Uma breve análise sobre eventos
motociclísticos em autódromos fechados
Escrevi ano retrasado a respeito da
irresponsabilidade de alguns "motoqueiros" – esses sim, mercem ser
tratados dessa forma – que insistiam em fazer de nossas ruas e estradas suas
pistas de corrida particulares, com total descaso pela vida alheia. (Moto
Adventure Nº 107, Outubro de 2009). No texto, indiquei que a solução para esse
excesso de adrenalina e testosterona seria a prática salutar do esporte em um
ambiente controlado, onde os riscos podem ser minimizados – como em um
autódromo. Não sabia que teria de voltar ao assunto tão brevemente, e dessa vez
para criticar a organização – ou falta dela – por quem oferece e controla esses
eventos.
Fato
Motovelocidade é um esporte de risco. Essa
é uma verdade incontestável – não há como isolar todos os fatores que podem
ceifar a vida humana. Mesmo assim, estamos em um constante processo evolutivo,
buscando sempre aprimorar as máquinas, equipamentos de segurança, bem como a
estrutura necessária para a prática do esporte. Nesse sentido, quero contribuir
para que o nível de segurança nos eventos para amadores se eleve e evolua, para
o bem estar do próprio esporte e seus praticantes.
Análise
do autódromo
"Track Day" é um termo
atualmente utilizado para definir eventos onde amadores têm acesso a um
autódromo por um período, com a finalidade de viverem um dia de piloto de competição.
Também foram chamados de "Racing Day" e outros termos semelhantes,
tendo tido o prazer de participar na organização de mais de vinte deles no
passado – quando se iniciaram no Brasil – todos ao lado de amigos conhecidos no
motociclismo paulista, como: Braguinha, João Karatê, Salim e Welington (XX).
Portanto, não é apenas a visão de um espectador, mas de quem vivenciou todos os
problemas que um evento desses é capaz de gerar.
Vamos começar pelo autódromo – a
estrutura necessária para um evento como esse deve compreender uma pista que
permita a prática da motovelocidade com o mínimo de risco, e caso não seja
homologada pelas entidades oficiais, medidas devem ser tomadas para garantir a
segurança dos candidatos à piloto. É o caso de Interlagos, que não é homologada
pela FIM (Federação Internacional de Motociclismo) para competições
internacionais, assim como outros autódromos pelo mundo. O motivo é porque
existem duas curvas específicas que não possuem a área de escape necessária
para uma moto que eventualmente caia em sua proximidade. As áreas de escape tem
evoluido com o uso de materiais que promovem a gradual desaceleração, mas que
no caso de motos em queda, tem pouco efeito. Daí a necessidade de se ter amplo
espaço sem que a moto ou seu piloto impactem contra obstáculos, que é o
principal fator de lesão para um piloto de moto. Quanto mais veloz a curva,
maior teria de ser sua área de escape, e vice-versa. No caso de Interlagos, a
segunda perna do "S" do Senna é uma das curvas, pois em sua
trajetória externa se encontra a saída de box, separada da pista por uma
barreira de proteção com pneus. Mas ela não é tão crítica quanto a outra –
curva do café – porque a velocidade é baixa, se consideradas todas as outras
curvas. Já no "café", como todos se referem, a estória é outra – uma
curva cega de altíssima velocidade, com muro da arquibancada a menos de dez
metros de distância do ápice da saída. A título de referência, com motos de
1000cc ela é tomada em quarta para quinta marcha a cerca de 240Km/h. Para
minimizar um impacto nessa curva é crucial a diminuição da velocidade – uma vez
que não existe projeto para ampliar a área de escape. Essa diminuição de
velocidade era obtida, nos eventos de que participei, através da criação de uma
"chiqueine" (curva em "s", normalmente produzida com
finalidade de redução de velocidade) no topo da subida que antecede a curva do
café, obrigando o piloto a manobrar em velocidade muito inferior. Com espaço
reduzido, também forçava a passagem de apenas uma moto por vez, estrangulando
de fato a pista. Além dessas medidas, adotavamos a prática de orientar os
pilotos para uma trajetória externa na área de entrada e saída dos boxes –
também consideradas críticas. Essa orientação normalmente era produzida através
de cones sinalizadores, indicando o caminho a ser percorrido.
O pensamento que nos norteava era sempre
o de que estavamos tratando com pessoas que nunca estiveram lá e que
necessitavam de todo e qualquer detalhe para se orientarem e desfrutarem de um
excelente dia movido a gasolina e adrenalina. Tudo tinha que ser pensado nesses
moldes, valorizando o indivíduo que deixou de fazer "porcaria" na
estrada para se aproximar de um ambiente mais saudável e profissional.
Candidatos
a piloto
Tratar com material humano é sempre
muito difícil devido às particularidades de cada um e como se comportam quando
em grupo. Em eventos como Track Days, é essencial ter a possibilidade de
observar o comportamento dos futuros pilotos à procura dos
"encrenqueiros" ou simplesmente daqueles que destoam do espírito do
evento. Para tanto mantinhamos pessoas com bom conhecimento motociclístico em
posições chave ao longo da pista, observando com binóculos o comportamento e
atitudes dos pilotos em sua atuação. Instrutores acompanhavam os mais novos e
de tempos em tempos se misturavam a diferentes grupos na pista para medir suas
reações. Assim que alguém começava a destoar da proposta – seja por excessos ou
atitudes inapropriadas – a pista era fechada, todos os integrantes convidados
para uma "chamada" nos boxes e aqueles identificados, recebiam
tratamento à parte, onde as regras eram novamente citadas, assim como o convite
para se retirar em caso de desobediência. Isso mesmo! E de fato, muitos foram
retirados.
Cabe aos "olheiros" tentar
identificar essas pessoas que podem vir a ser um problema para os outros ou
para elas mesmas, por isso era importante que detalhes fossem reunidos a
respeito da conduta, justificando uma possível punição.
Categorias
Em eventos amadores, existem grandes
disparates entre níveis de pilotos – desde os que estão lá pela primeira vez
aos que já são tratados como "ratos de autódromo". Não se pode
misturar pilotos de diferentes níveis na pista, seja pela experiência ou pelo
equipamento que pilotam. Os menos experientes devem andar com os do mesmo
nível, assim como os experientes. Deve tambem se ater ao fato de que motos com
diferentes capacidades de produção, também não podem andar juntas, ainda mais
em um circuito com curvas cegas, onde um piloto rápido pode se deparar com um
bem mais lento que ele sem tempo para reação. Devido a trejetórias muito
limitadas, isso pode causar uma verdadeira tragédia. Existem diferentes meios
para se fazer essa classificação, cabendo ao organizador realmente produzí-la
para garantir a segurança dos que ali se encontram.Nossa meta, quanto às motos,
era estabelecer uma diferença de velocidade máxima possível não superior a 15%
para cada grupo.
Aos
futuros pilotos
Se você, caro leitor, procura uma forma
divertida e saudável para dar vazão à sua adrenalina e prazer com a velocidade,
esse é certamente o caminho mais apropriado. Em um "Track Day" poderá
desfrutar da pilotagem propriamente dita, sem ter que se preocupar com todos os
problemas comumente encontrados em estradas. O ambiente é controlado para que
você e seu "brinquedo" voltem inteiros para casa, mesmo sabendo que
alguns não vão brincar direito e quebrarão o objeto de prazer. O que é
inadimissível, é que vá para um evento desses querendo disputar com outros o
título de "bam-bam-bam". Para isso existe a competição, que tem
regras próprias. O evento é desenhado para que se divirta em um ambiente de
risco, mas minimizando o mesmo no que for possível.
Cobre do organizador uma clara
explanação de quais medidas foram adotadas para sua segurança. Quantos médicos
há na pista, que tipo de especialidade têm e que estrutura possuem para
tratamento e transporte. Exija que sua vida esteja em primeiro lugar e se
sentir que de alguma forma foi negligenciado nessa premissa, denuncie às
autoridades. Todos os organizadores desse tipo de evento estão subordinados e sob
supervisão das entidades oficiais, como a Federação de motociclismo de seu
estado, e a Confederação Brasileira de Motociclismo.
Em última instância, se de alguma forma
não concordar com a forma que sua segurança é gerida, abandone o evento, conte
aos seus amigos e denunie à imprensa. Nada pior para o organizador que um
evento sem participantes.
Aos
organizadores e dirigentes
Nós, profissionais do motociclismo,
temos a obrigação de zelar por aqueles que desfrutam de nossos eventos, sejam
eles de que tipo forem. É imperdoável que "Track Days" e mesmo
competições, sejam transformados em shows de horror, seja pelo dano material ou
pela perda de vidas. Cabe a todos nós refletirmos sobre os valores envolvidos e
principalmente sobre a responsabilidade que temos na manutenção dessas vidas em
um ambiente saudável. Para alguns é apenas um negócio, mas mesmo sendo uma
fonte de lucro, não deixa de carregar a responsabilidade sobre a vida humana. Nenhum
organizador de evento tem o direito de colocar o lucro na frente do bem estar
daquele à quem atende. Curiosamente, todos os acidentes fatais ocorridos nos
últimos anos em Interlagos envolvendo motos, aconteceram com pilotos amadores.
Às autoridades competentes envolvidas na
homologação, supervisão e controle desses eventos, cabe exigir dos
organizadores um plano de trabalho detalhado, estabelecendo os critérios para
atuação, e em última instância, fiscalizar e punir quem não produzir o
acordado. No mesmo sentido, a mídia especializada também tem a responsabilidade
de denunciar qualquer forma de conduta que não privilegie o motociclismo e tudo
que ele representa coletivamente, e no que me compete, estarei atento.
Homenagem
Dedico esse texto ao amigo e colega de
trabalho que prematuramente nos deixou, o fotógrafo João Lisboa.
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