segunda-feira, 14 de março de 2011

Track day – solução, ou mais um problema?

Uma breve análise sobre eventos motociclísticos em autódromos fechados

Escrevi ano retrasado a respeito da irresponsabilidade de alguns "motoqueiros" – esses sim, mercem ser tratados dessa forma – que insistiam em fazer de nossas ruas e estradas suas pistas de corrida particulares, com total descaso pela vida alheia. (Moto Adventure Nº 107, Outubro de 2009). No texto, indiquei que a solução para esse excesso de adrenalina e testosterona seria a prática salutar do esporte em um ambiente controlado, onde os riscos podem ser minimizados – como em um autódromo. Não sabia que teria de voltar ao assunto tão brevemente, e dessa vez para criticar a organização – ou falta dela – por quem oferece e controla esses eventos.

Fato

Motovelocidade é um esporte de risco. Essa é uma verdade incontestável – não há como isolar todos os fatores que podem ceifar a vida humana. Mesmo assim, estamos em um constante processo evolutivo, buscando sempre aprimorar as máquinas, equipamentos de segurança, bem como a estrutura necessária para a prática do esporte. Nesse sentido, quero contribuir para que o nível de segurança nos eventos para amadores se eleve e evolua, para o bem estar do próprio esporte e seus praticantes.

Análise do autódromo

"Track Day" é um termo atualmente utilizado para definir eventos onde amadores têm acesso a um autódromo por um período, com a finalidade de viverem um dia de piloto de competição. Também foram chamados de "Racing Day" e outros termos semelhantes, tendo tido o prazer de participar na organização de mais de vinte deles no passado – quando se iniciaram no Brasil –  todos ao lado de amigos conhecidos no motociclismo paulista, como: Braguinha, João Karatê, Salim e Welington (XX). Portanto, não é apenas a visão de um espectador, mas de quem vivenciou todos os problemas que um evento desses é capaz de gerar.

Vamos começar pelo autódromo – a estrutura necessária para um evento como esse deve compreender uma pista que permita a prática da motovelocidade com o mínimo de risco, e caso não seja homologada pelas entidades oficiais, medidas devem ser tomadas para garantir a segurança dos candidatos à piloto. É o caso de Interlagos, que não é homologada pela FIM (Federação Internacional de Motociclismo) para competições internacionais, assim como outros autódromos pelo mundo. O motivo é porque existem duas curvas específicas que não possuem a área de escape necessária para uma moto que eventualmente caia em sua proximidade. As áreas de escape tem evoluido com o uso de materiais que promovem a gradual desaceleração, mas que no caso de motos em queda, tem pouco efeito. Daí a necessidade de se ter amplo espaço sem que a moto ou seu piloto impactem contra obstáculos, que é o principal fator de lesão para um piloto de moto. Quanto mais veloz a curva, maior teria de ser sua área de escape, e vice-versa. No caso de Interlagos, a segunda perna do "S" do Senna é uma das curvas, pois em sua trajetória externa se encontra a saída de box, separada da pista por uma barreira de proteção com pneus. Mas ela não é tão crítica quanto a outra – curva do café – porque a velocidade é baixa, se consideradas todas as outras curvas. Já no "café", como todos se referem, a estória é outra – uma curva cega de altíssima velocidade, com muro da arquibancada a menos de dez metros de distância do ápice da saída. A título de referência, com motos de 1000cc ela é tomada em quarta para quinta marcha a cerca de 240Km/h. Para minimizar um impacto nessa curva é crucial a diminuição da velocidade – uma vez que não existe projeto para ampliar a área de escape. Essa diminuição de velocidade era obtida, nos eventos de que participei, através da criação de uma "chiqueine" (curva em "s", normalmente produzida com finalidade de redução de velocidade) no topo da subida que antecede a curva do café, obrigando o piloto a manobrar em velocidade muito inferior. Com espaço reduzido, também forçava a passagem de apenas uma moto por vez, estrangulando de fato a pista. Além dessas medidas, adotavamos a prática de orientar os pilotos para uma trajetória externa na área de entrada e saída dos boxes – também consideradas críticas. Essa orientação normalmente era produzida através de cones sinalizadores, indicando o caminho a ser percorrido.

O pensamento que nos norteava era sempre o de que estavamos tratando com pessoas que nunca estiveram lá e que necessitavam de todo e qualquer detalhe para se orientarem e desfrutarem de um excelente dia movido a gasolina e adrenalina. Tudo tinha que ser pensado nesses moldes, valorizando o indivíduo que deixou de fazer "porcaria" na estrada para se aproximar de um ambiente mais saudável e profissional.

Candidatos a piloto

Tratar com material humano é sempre muito difícil devido às particularidades de cada um e como se comportam quando em grupo. Em eventos como Track Days, é essencial ter a possibilidade de observar o comportamento dos futuros pilotos à procura dos "encrenqueiros" ou simplesmente daqueles que destoam do espírito do evento. Para tanto mantinhamos pessoas com bom conhecimento motociclístico em posições chave ao longo da pista, observando com binóculos o comportamento e atitudes dos pilotos em sua atuação. Instrutores acompanhavam os mais novos e de tempos em tempos se misturavam a diferentes grupos na pista para medir suas reações. Assim que alguém começava a destoar da proposta – seja por excessos ou atitudes inapropriadas – a pista era fechada, todos os integrantes convidados para uma "chamada" nos boxes e aqueles identificados, recebiam tratamento à parte, onde as regras eram novamente citadas, assim como o convite para se retirar em caso de desobediência. Isso mesmo! E de fato, muitos foram retirados.

Cabe aos "olheiros" tentar identificar essas pessoas que podem vir a ser um problema para os outros ou para elas mesmas, por isso era importante que detalhes fossem reunidos a respeito da conduta, justificando uma possível punição.

Categorias

Em eventos amadores, existem grandes disparates entre níveis de pilotos – desde os que estão lá pela primeira vez aos que já são tratados como "ratos de autódromo". Não se pode misturar pilotos de diferentes níveis na pista, seja pela experiência ou pelo equipamento que pilotam. Os menos experientes devem andar com os do mesmo nível, assim como os experientes. Deve tambem se ater ao fato de que motos com diferentes capacidades de produção, também não podem andar juntas, ainda mais em um circuito com curvas cegas, onde um piloto rápido pode se deparar com um bem mais lento que ele sem tempo para reação. Devido a trejetórias muito limitadas, isso pode causar uma verdadeira tragédia. Existem diferentes meios para se fazer essa classificação, cabendo ao organizador realmente produzí-la para garantir a segurança dos que ali se encontram.Nossa meta, quanto às motos, era estabelecer uma diferença de velocidade máxima possível não superior a 15% para cada grupo.

Aos futuros pilotos

Se você, caro leitor, procura uma forma divertida e saudável para dar vazão à sua adrenalina e prazer com a velocidade, esse é certamente o caminho mais apropriado. Em um "Track Day" poderá desfrutar da pilotagem propriamente dita, sem ter que se preocupar com todos os problemas comumente encontrados em estradas. O ambiente é controlado para que você e seu "brinquedo" voltem inteiros para casa, mesmo sabendo que alguns não vão brincar direito e quebrarão o objeto de prazer. O que é inadimissível, é que vá para um evento desses querendo disputar com outros o título de "bam-bam-bam". Para isso existe a competição, que tem regras próprias. O evento é desenhado para que se divirta em um ambiente de risco, mas minimizando o mesmo no que for possível.

Cobre do organizador uma clara explanação de quais medidas foram adotadas para sua segurança. Quantos médicos há na pista, que tipo de especialidade têm e que estrutura possuem para tratamento e transporte. Exija que sua vida esteja em primeiro lugar e se sentir que de alguma forma foi negligenciado nessa premissa, denuncie às autoridades. Todos os organizadores desse tipo de evento estão subordinados e sob supervisão das entidades oficiais, como a Federação de motociclismo de seu estado, e a Confederação Brasileira de Motociclismo.

Em última instância, se de alguma forma não concordar com a forma que sua segurança é gerida, abandone o evento, conte aos seus amigos e denunie à imprensa. Nada pior para o organizador que um evento sem participantes.

Aos organizadores e dirigentes

Nós, profissionais do motociclismo, temos a obrigação de zelar por aqueles que desfrutam de nossos eventos, sejam eles de que tipo forem. É imperdoável que "Track Days" e mesmo competições, sejam transformados em shows de horror, seja pelo dano material ou pela perda de vidas. Cabe a todos nós refletirmos sobre os valores envolvidos e principalmente sobre a responsabilidade que temos na manutenção dessas vidas em um ambiente saudável. Para alguns é apenas um negócio, mas mesmo sendo uma fonte de lucro, não deixa de carregar a responsabilidade sobre a vida humana. Nenhum organizador de evento tem o direito de colocar o lucro na frente do bem estar daquele à quem atende. Curiosamente, todos os acidentes fatais ocorridos nos últimos anos em Interlagos envolvendo motos, aconteceram com pilotos amadores.

Às autoridades competentes envolvidas na homologação, supervisão e controle desses eventos, cabe exigir dos organizadores um plano de trabalho detalhado, estabelecendo os critérios para atuação, e em última instância, fiscalizar e punir quem não produzir o acordado. No mesmo sentido, a mídia especializada também tem a responsabilidade de denunciar qualquer forma de conduta que não privilegie o motociclismo e tudo que ele representa coletivamente, e no que me compete, estarei atento.

Homenagem

Dedico esse texto ao amigo e colega de trabalho que prematuramente nos deixou, o fotógrafo João Lisboa.

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